A frase que dá título a este texto é de Martha Vianna e está no livro de sua autoria, Uma tempestade como a sua memória: a história de Lia, Maria do Carmo Brito, publicado em 2003, pela editora Record. O livro é uma biografia social, digamos assim, da camarada Lia, um dos nomes adotados pela socióloga e militante Maria do Carmo Brito durante os anos de clandestinidade, nos quais integrou organizações que se dedicaram à luta armada contra à ditadura civil militar, que governou o Brasil durante vinte e um anos.
“Se não militar por alguma coisa, morro” foto: Bruno Miranda da reportagem de Nina Lemos para a TPM, em 2014
Ela é o espelho de uma geração, hoje entre 75 e 85 anos, que viveu anos efervescentes, nos quais a utopia da transformação social radical parecia estar ao alcance das mãos e dos corações latino-americanos. Sobre os ossos e sangue destes jovens, a violência conservadora do capital marchou pela família, pela propriedade e por Deus (sic). Perdemos batalhas, mas não a luta, que segue em curso levada a cabo por sementes que brotam tanto dos sobreviventes, quanto daqueles que pereceram.
A primeira vez que ouvi falar da distinta Camarada Lia, dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária, junto a Lamarca e outros companheiros, foi no livro O massacre da Granja São Bento, de Luiz Felipe Campos. No Chile, em contato com a amiga Inês Etienne Romeu, bravíssima camarada, única sobrevivente da Casa da Morte (falarei dela em outro momento com mais vagar), Maria do Carmo ficou sabendo que o cabo Anselmo teria sido preso e, se agora havia notícias de que estava solto, ele só poderia estar como agente duplo. Ela foi, portanto, uma das únicas pessoas que entendeu o jogo e desmascarou o canalha do Cabo Anselmo, mas os companheiros não acreditaram nela, que ficou com fama de colaborar com a CIA por um ano. O resultado já sabemos: além do massacre da Granja São Bento, mais de 100 companheiros foram delatados por Anselmo em sua colaboração com o criminoso delegado-torturador Fleury (que até ciranda em Olinda dançou disfarçado de civil).
A inteligência e sagacidade de Maria do Carmo eram amplamente conhecidas. E foi em razão disso, que fui atrás de mais informações sobre ela e cheguei no livro de Martha Vianna.
A história de Maria do Carmo Brito é marcada pela entrega à luta, pelos inúmeros custos pessoais, familiares e materiais disso, e também pelos laços de camaradagem e solidariedade exercidos por uma comunidade internacional formada e alimentada pelos caçadores de utopia do mundo inteiro.
Nascida em Belo Horizonte em 1943, filha de Dona Angelina Dutra e Jefferson de Oliveira e Souza diz que o envolvimento da família com a política começou com Getúlio. Enquanto seu pai servia ao exército e aguardava o chamado para lutar na Segunda Guerra, sua mãe prestou concurso para a rede Ferroviária Federal e foi aprovada em quarto lugar. Apesar disso, a nomeação não chegava e as dificuldades se acumulavam. D. Angelina resolveu então escrever para o presidente Getúlio Vargas. Recebeu uma nota escrita à mão que dizia “faça-se justiça à candidata” e assumiu o posto poucos dias depois. “Quando soube da história, Jefferson viu ali a oportunidade de sua vida. Escreveu imediatamente a Getúlio pedindo um emprego. E recebeu de volta um envelope enorme, cheio de prospectos de concursos. Como se o presidente dissesse: faça como sua mulher”. Desde esse episódio, a família virou getulista. Posteriormente, seu pai tornou-se funcionário da Companhia de Mineração Ferro Brasileiro, em Caeté, e lá foi responsável por fundar o primeiro diretório do PTB - Partido Trabalhista Brasileiro.
Na adolescência, vivida em Belo Horizonte, Maria do Carmo começou a se envolver em eventos políticos e movimentos sociais impulsionada pelo incômodo com a desigualdade social e pelo ímpeto de fazer parte da mudança. Aos quinze anos entrou para a Juventude Estudantil Católica (JEC), mas dúvidas de fé a fizeram se desligar da organização. No Ginásio, participava de protestos contra as multinacionais de minérios, onde buscava encontrar os tão falados comunistas.
Em 1961, entrou para a Faculdade de Ciências Econômicas, onde cursou Ciências Sociais, encontrando finalmente as pessoas do Partido Comunista, da Política Operária Trotskista (POLOP) e da Ação Popular (AP, ligada à Igreja Católica).
No momento inicial, foi recrutada pelo Partidão PC e começou os cursos de formação política. Acabou deixando o PC, pelo mesmo motivo que saiu da JEC, “dúvidas de fé”, não aceitava a abordagem dogmática dos companheiros. Saiu do PC, mas não da política, participava de tudo, greves, passeatas etc. Em 1961, Jânio renunciou e a tensão para impedir a posse de Jango aumentou. Correndo da polícia em um ato, ela e Juares Brito, líder estudantil conhecido da Faculdade, dão as mãos e nunca mais se soltam. Começaram a namorar e meses depois, aos 19 anos, Maria do Carmo casou com Juares somente no civil, uma transgressão para os padrões da época: “tudo que a gente queria era namorar”. O casamento foi a saída para que isso pudesse acontecer livremente.
foto do casamento de Juares e Maria do Carmo Brito
“Depois de casada, Maria do Carmo entrou para POLOP, onde já estava Juares. E em fevereiro de 1963, os dois foram mandados para Goiás, com a missão de retomar o contato com os camponeses, cuidando da criação dos sindicatos rurais”.
1963 também foi o ano da primeira prisão do casal, por conta das atividades relacionadas aos sindicatos rurais. Foram embora de Goiás em direção ao Recife, conhecido como a Cidade Vermelha. Oficialmente Juares vinha com um cargo na Sudene e ela vinha trabalhar na UFPE. Politicamente, os dois tinham a tarefa de organizar a POLOP no local. Quando estourou o Golpe de 1964, os dois viviam aqui, e aqui também ocorreu a segunda prisão de Juares, uma prisão que teoricamente se deu por engano e da qual ele acabou saindo ileso.
Mas, o fato é que desde a ida a Goiás, para articular os sindicatos rurais, no bojo da luta por reforma agrária e do trabalho das Ligas Camponesas, até depois do golpe, o casal viveu em fuga e depois na clandestinidade. A mãe de Maria do Carmo, D. Angelina, era líder sindical, implicada na política e a luta foi feita em família, bem como as prisões e o exílio.
cartazes espalhados pelos militares, sempre adeptos das fake news
Em 1967, a POLOP rachou e surgiu a COLINA (Comandos de Libertação Nacional) que decidiu partir de modo independente para a luta armada, decisão acatada por Juares e Maria do Carmo. As primeiras ações foram direcionadas a conseguir armas e dinheiro, ações de expropriação como assaltos a banco. Juares era o grande maestro planejador que usava seu conhecimento em administração para compensar a absoluta falta de habilidade militar de seu grupo. “Assim, se o assalto ao banco ia acontecer no dia X, dois dias antes os carros deveriam estar prontos, três dias antes as placas frias disponíveis, quatro dias antes os disfarces, até que tudo se encaixasse como um quebra-cabeça. Além disto, Juares fazia o levantamento detalhado de quanto tempo a polícia demoraria para chegar, examinava o trânsito, mão, contramão, os mínimos detalhes eram vistos e analisados. Então, dava sempre tudo certo”.
1968 foi um marco em vários sentidos. Houve uma maior sensibilização interna, da sociedade civil brasileira, com relação à resistência à Ditadura, além de uma ebulição no mundo. Não por acaso, foi também o ano do Ato Institucional Número 5, que incrementou a repressão e a violência dos militares, empurrando muitos jovens para a clandestinidade e para a luta armada. Em 1969, o COLINA se juntou à Vanguarda Popular Revolucionária de Lamarca, em busca de mais robustez, e assim nasceu a VAR-PALMARES que durou seis meses e realizou a ação de expropriação de 2 milhões e meio de dólares, do cofre de Ana Benchimol, a amante de Adhemar Barros, ex-governador de São Paulo, cujo lema era “roubo mas faço”. Logo depois, houve nova cisão e o grupo de Maria do Carmo seguiu com Lamarca na VPR.
Depois do cofre, o cerco se fechou: Juares e Maria do Carmo Brito estavam sendo caçados. Não demorou muito até a sua prisão. Nos primeiros meses de 1970, Maria do Carmo já questionava o sucesso da luta armada no combate ao regime, mas não havia opção a não ser continuar. “Nesse período, começaram a morrer, de uma maneira muito terrível, vários companheiros”. E já havia uma série de orientações para o caso de cair, incluindo o suicídio. Todas se provaram falhas e incapazes de qualquer proteção diante da tortura.
Nesse momento, as principais atividades de Maria do Carmo eram transportar dinheiro, munição e material impresso para companheiros da VPR espalhados pelo Brasil. Além disso, Juares e sua célula planejavam o sequestro do embaixador alemão no Brasil. Havia um camarada que estava com a saúde mental abalada a quem foi dada a missão de achar e preparar o cativeiro do embaixador. Dia 18 de abril de 1970, havia um ponto com ele, que andava sumido, havia dúvidas se ele teria caído. Juares e Maria do Carmo foram ao encontro de Wellington, que estava lá, verde, e conseguiu sinalizar para eles não pararem. Mas Juares, contra as recomendações, não aceitou abandonar o companheiro, a quem queria como um filho, e caiu na emboscada. Ele e Maria do Carmo tinham uma combinação de matar o outro e se matar em seguida, em caso de ameaça de prisão. Mas nesse dia, ele tomou a arma da mão dela, atirou em si, e foi também alvejado por inúmeros tiros vindos dos policiais. Ela escapou dos tiros, mas não da prisão.
Aí começou o seu calvário na tortura, no qual as principais perguntas eram: onde está Lamarca e onde está o dinheiro do cofre?
Os camaradas (incluindo Inês Etienne Romeu), mesmo abalados e desarticulados, conseguiram levar a cabo, meses depois, o sequestro do embaixador alemão, seguindo o planejamento de Juares (como ele morreu, ninguém caiu e os planos ficaram protegidos), por amor e amizade, e esta ação libertou 40 presos políticos, incluindo Maria do Carmo Brito, que saiu do Brasil em direção à Argélia. Nos anos de exílio, ela viveu no Chile de Allende, na Bélgica, no Panamá, em Portugal, mais de uma vez, incluindo o momento da Revolução dos Cravos, e em Angola (pós independência, mas em guerra civil). Saiu do Brasil como apátrida e só voltou, em 1979, após a Lei da Anistia. No exílio, casou-se novamente duas vezes, com Ângelo Pezutti, pai de seu filho Juarez, e Mario Japa (seu companheiro final), pai de sua filha Lótus (a maternidade para um corpo torturado adquire contornos outros, “água nova brotando e a gente se amando sem parar”) e lutou o bom combate.
Recomendo fortemente a leitura do livro, com tempo para refletir sobre sua trajetória, sem romantizações, e se comover diante de sua força, suas fraquezas, e dos detalhes do dia a dia na luta, na clandestinidade, na prisão ao lado de companheiras e companheiros valorosos, de alta qualidade humana, que dão significado a um cotidiano permeado pelo horror.
[Para quem chegou até aqui, queria ainda deixar uns fragmentos do meu cotidiano]
~ Bolo de chocolate, vinho do porto e marijuana
Sábado passado, 6 de abril de 2024, Leonora Carrington completaria 107 anos. Gostaria que ela estivesse viva, para virar este mundo de cabeça para baixo, junto com suas amigas idosas e uns lobos, tal qual Marian, Carmella e companhia limitada no brilhante e divertido romance A Corneta, escrito pela artista em 1976, com edição nova publicada pela editora Alfaguara, no Brasil, em 2023.
A corneta foi o livro do Clube Traça de fevereiro, quando em razão do carnaval estamos todas, principalmente as pernambucanas, tomadas pela fantasia. Achei que calharia com uma leitura que convida a imaginar e a se deixar levar pelo extraordinário. Um livro com muitas leituras possíveis e que, como diz Olga Tokarczuk no posfácio, tem o grande mérito de suscitar questões, propondo uma conversa que pode ser infinda.
~ News que gosto de acompanhar:
Gianni Gianni | eu faço listas
https://substack.com/@viralata
Bárbara Bom Angelo | queria ser grande, mas desisti https://substack.com/@babibomangelo
Adelaide Ivánova | vodca barata
https://substack.com/@adelaideivnova
Gisela Gueiros | Gisela Hottest takes
https://substack.com/@giselagueiros
Lena Mattar
https://substack.com/@lenamattar
~ Lidos que gostei (março/abril)
Meu dias na livraria morisaki, Satoshi Yagisawa
Leitura muito leve sobre uma jovem adulta em crise, confusa após ter o coração partido e perder um emprego, que se reencontra ao ir morar na livraria de um tio querido, do qual andava afastada há muito. É gostoso acompanhar a trajetória da personagem, com final redentor, e ainda passear por Jimbocho, o distrito dos livros em Tóquio, onde fica a livraria que dá título ao romance.
A serpente cósmica: o DNA e a origem do saber, Jeremy Narby
Um ensaio do antropólogo suíço sobre as origens do conhecimento, sobre limites e encontros entre mundos e formas de saber, a partir de suas pesquisas sobre xamanismo, ayahusqueros e tabaqueros da amazônia. Ainda estou lendo, mas já estou recomendando. Sensacional.
Patrícia Galvão: Pagu, militante irredutível, Maria Valéria Rezende
Maria Valéria Rezende nos conta a vida de Patrícia Galvão, a partir da militância política, e, principalmente, tendo como ponto de partida o encontro das duas escritoras. É um livro lindo, gostoso de ler, selo MVR de qualidade, e que deixa muito evidente o debate sobre o caráter narrativo das amizades femininas e a outra necessária, ideia explorada por Elena Ferrante em um dos ensaios de As margens e o ditado.
awn. agora que vi essa indicação. sempre gostoso, ainda mais quando vem de quem a gente admira. <3
que história incrível! vou procurar pelo livro.