Otacília, minha avó materna, era analfabeta. Casou-se com 14 anos, teve 16 gestações e 9 filhos. Junto com meu avô, agricultor, que não cheguei a conhecer, sabia a importância da educação para os seus filhos. Todos estudaram, os mais velhos começaram cedo a trabalhar e possibilitaram que a vida dos mais novos fosse menos dura. A terceira geração, os netos de Otacília e Ladislau, teve acesso à educação universitária. Eu, neta de analfabetos, tenho nome de livro: Clarissa, de Érico Veríssimo, a menina que vira professora em Música ao Longe. Gosto de pensar que esse nome, e a personagem que ele evoca, de alguma forma anteciparam elementos fundamentais de minhas identidade e trajetória. Ler para estar com as pessoas, ensinar e aprender com as camaradas.
Desde que me entendo por gente falo demais, sou curiosa e leio. Essa ação constitui minha subjetividade e, de certa forma, me define. Nunca fui muito das aventuras na rua, tampouco dos esportes. Amava ficar no banco, durante os jogos internos, torcendo e analisando o time. Nunca quebrei dedo, nem sequer um dente. Pulava muro com precaução (e calce rs). Só aprendi (há controvérsias) a andar de bicicleta depois dos 30 anos. Não dirijo nem carrinho de bate-bate (ótima história, fica para depois). Gostava de casa, gosto até hoje, de estar entre os adultos, observar, ouvir histórias, repassar fofocas, fuçar os livros e discos da minha mãe e do meu tio Aldo.
As visitas à casa de Alga, vizinha de porta em Olinda, não eram só para brincar com Marina e Adriana, suas filhas, mas principalmente para deitar sobre os tecidos, enquanto Alga costurava, e conversar sabe-se lá sobre o quê com ela. Gostava de ir para lá também admirar o seu bar de madeira e espelhos, e o telefone de base transparente, que acendia quando tocava (decoração proibida em minha casa, mainha achava brega). Eram os anos 1980, claro.
Não diria que a opinião dos outros não importa, ou que eu seja (ou fosse quando criança) imune ao desejo de pertencer. Muito pelo contrário. Mas, fato é que não me sinto facilmente desafiada: não ia pular o muro só porque todo mundo pulava. Costumo colocar meus medo e bem-estar acima da pressão social. Lembro de ir com minhas amigas ao Shopping Guararapes patinar no gelo. No caso elas patinavam, porque eu não queria cair na frente de todo mundo, tampouco correr o risco de me machucar. Gastava então o tempo da patinação na Livraria Imperatriz, que ficava em frente à pista.
No entanto, me irritava quando me diziam que tal ou qual leitura não era para mim. A corda dos desafios intelectuais, por assim dizer, eu engolia. Mais ou menos aos 11 anos, alguém me negou a possibilidade de ler Machado de Assis. “Não é para criança!”. E não é, mas não aceitei. Li O Alienista com o dicionário ao lado, consultando-o a cada duas palavras. Leitura difícil (não é para criança!), mas até hoje um dos meus livros favoritos e Machado um dos escritores que mais admiro e gosto de reler. Lembro a primeira vez que varei a noite lendo, porque era impossível parar: Meu pé de laranja lima, quantas lágrimas derramadas em solidariedade ao menino Zezé.
Pedro Bandeira e os Karas, Veleiro de Cristal, O menino do dedo verde, Helena, Clarissa, Música ao longe animaram a minha vida de leitora. Não posso deixar de mencionar a adolescente mística que leu Paulo Coelho, mas também Henfil, Ignácio de Loyola Brandão, Camus, Clarice, Hilda etc. A universidade expandiu os horizontes, entretanto o mundo era majoritariamente construído a partir da escrita do homem, em regra branco, naquele lugar, que eles fundaram e sentaram, de sujeito universal.
Há quase dez anos, junto com o movimento #leiamulheres, comecei a priorizar a produção literária de autoras e outras minorias políticas, organizando meu hábito, lazer e trabalho a partir de alguns valores e compromissos políticos incontornáveis. Cansada de saber da vida e da visão de mundo de homens brancos com complexo de gênio (nada contra, até tenho amigos que são rs), fazendo a linha atormentados, regando suas masculinidades frágeis com o suor e as lágrimas de jovens e/ou silenciosas mulheres.
Que estimulante ler outros mundos, encontrar narrativas outras. Um portal riquíssimo, complexo e diverso se abriu. Sigo explorando-o e o conhecendo até hoje, uma década depois. Descobri uma série de mulheres brilhantes (e alguns homens não-hegemônicos), que vinham sendo mais ou menos silenciadas pelo cânone, pelo mercado editorial e esquecidas pelos leitores.
O entusiasmo com as descobertas foi enorme. Resolvi combinar minha formação como socióloga e o amor pela literatura em um clube do livro para compartilhar esses achados com outras mulheres. Foi daí que nasceu o Traça, clube de leitura feminino e feminista, que em 2024 completará seis anos.
Recuperei um pouco de minha biografia como leitora, porque ontem foi dia internacional do livro e tive vontade de reafirmar o poder da leitura e da literatura na construção de nossas subjetividades e visões de mundo. Além, claro, de destacar sua importância nos caminhos para transformação da sociedade. Entre outros relevantes motivos, foi a sensibilidade à potência da leitura e da literatura que fez a vida da minha família mudar e tornou possível à neta de uma analfabeta se tornar não somente leitora, como doutora. Talvez registrar isso seja também uma forma de fazer justiça à minha avó.
Otacília, D. Totinha, celebrando seus 80 anos.
Saramago, escritor proletário, ao escrever sobre a avó, Josefa, iletrada como a minha, se pergunta: "Por que foi que te roubaram o mundo? Quem to roubou?". A pergunta permanece em voga e a resposta nós sabemos.
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Eu não gosto de fazer listas, fico ansiosa. Mesmo assim, deixo vocês com uma (não exaustiva e não hierarquizada) de livros amados cuja leitura me transformou:
Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus
Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves
Amada, Toni Morrison
Sei porque o pássaro canta na gaiola, Maya Angelou
A mulher de pés descalços, Scholastique Mukasonga
Cartas a uma negra, Françoise Ega
Pagu: uma autobiografia, Patrícia Galvão
As meninas, Lygia Fagundes Telles
A hora da estrela, Clarice Lispector
40 dias, Maria Valéria Rezende
O martelo, Adelaide Ivánova
Garota, mulher, outras, Bernardine Evaristo
Arquivo das crianças perdidas, Valeria Luiselli
O invencível verão de Liliana, Cristina Rivera Garza
O corpo em que nasci, Guadalupe Nettel
O amante, Marguerite Duras
O lugar, Annie Ernaux
Escute as feras, Nastassja Martin
Só Garotos, Patti Smith
A corneta, Leonora Carrington
um dos melhores legados dos meus pais foi o incentivo à leitura, dos gibis da turma da mônica a livros mais densos. quem tem livros tem tudo!
adorei te ver e te ler assim na news do traça, uma trajetória Clarissa 💖