“eles não terão a última palavra sobre nossas vidas e nossos corpos”
povo que esquece o caminho tropeça na mesma pedra
Violeta Parra
Ainda me impressiona como cuidamos mal de nossa História e memória. Sigo indignada com a forma através da qual o Estado brasileiro conduziu o processo de redemocratização, com tímidas e ineficientes políticas de reparação. E me pergunto como pude me formar doutora em Sociologia sabendo tão pouco sobre a história das mulheres no Brasil (e no mundo)?
Na verdade, sei dos motivos que tornam possíveis essas lacunas em minhas (nossas?) educação e formação política. Entretanto, mais do que falar sobre eles agora, penso que é urgente encontrar meios de acessar e compartilhar esse conhecimento que nos foi, e ainda é, estrategicamente negado.
Com períodos de maior e menor intensidade, venho me dedicando a uma pesquisa sobre mulheres e ditadura, buscando informações sobre as biografias e trajetórias das militantes envolvidas na luta contra o regime instaurado em 1964 no país.
Neste ano, li memórias, romances, livros especializados, testemunhos, documentos da comissão da verdade, relatórios da anistia internacional; vi filmes (documentários e ficções) em busca de fragmentos que, no presente, sejam capazes de nos mostrar fendas e pistas para o passado, para o que se perdeu no tempo. Esse material de pesquisa foi a base para montar o primeiro ciclo de leituras feminismos e ditadura que começa este mês (para saber mais clica aqui: https://www.sympla.com.br/i-ciclo-de-leituras-feminismos-e-ditadura---clube-traca__2238652 ).
Ao longo das leituras, uma pergunta se impôs: “como se pune uma mulher que ousa lutar?”. Similar à caça às bruxas, punia-se brutalmente as mulheres que cometiam o “duplo pecado” de se envolverem na política fazendo oposição ao regime e afrontando, em tantos níveis, as expectativas e os papéis de gênero tradicionais. Violências sexuais e torturas inimagináveis foram dirigidas a tais corpos, incluindo também (ou principalmente?) mães e gestantes para impedir o exercício de suas maternidades e mesmo que “mais um comunista nascesse”.
O fantasma do comunismo que segue assombrando esse país deveria ser o de uma geração assassinada e massacrada pelo Estado e não o do kit gay, dos “invasores de terra”, entre outras ficções escrotas criadas e exploradas pelos cinquenta tons de direita que fazem política no Brasil.
É difícil mergulhar nessas histórias, mas é preciso. Não só para honrá-las, mas também para saber do que somos feitas. Acima de tudo, essa memória é valiosa para combater o cinismo e o desencanto. Sempre houve luta e segue havendo, longe do que a mídia e a História oficial querem nos fazer acreditar. O fim do mundo vem sendo adiado pela dedicação, teimosia e desobediência daquelas que teimam em acreditar na construção um mundo melhor para as pessoas.
Deixo vocês com uma estória do cárcere: quando uma companheira era libertada da prisão, que ficou conhecida como Torre das Donzelas (sic), as demais cantavam, em coro, Suíte do Pescador de Dorival Caymmi. Uma flor no asfalto, um momento de ternura em meio a dor, porque assim é a vida de quem vive de esperançar.
“Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar, meu bem querer
Se Deus quiser quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer”
Dodora, presente!
Helenira Rezende, presente!
Dulce Maria, presente!
Dilma Rousseff, presente!
Inês Etiene Romeu, presente!