“nem todo trajeto é reto, nem o mar é regular”
Assim começa Cobra Rasteira do Meta Metá, um dos meus hinos pessoais.
Foto: Jacques Henri Lartigue
O que deveria ser uma obviedade, na verdade, é um aprendizado difícil, porque vai de encontro a uma série de mentiras que nos são insistentemente contadas, para que gastemos a vida tentando corresponder e nos encaixar naquilo que é prescrito pela sociedade e, não por acaso, azeita e mantém os projetos de dominação hegemônicos.
Por que insistir em fazer a matéria vida, tão fina, caber em uma linha reta? Quão medíocre é guiar a existência a partir de palavras como sucesso, progresso, quando a experiência, a natureza, o tempo - o deus mais lindo - nos ensinam que nada vive de forma linear, tudo existe em ciclos, movimento: começo-meio-começo, assim roda a gira, como ensina Nego Bispo.
NADA, absolutamente nada, neste mundo em franca destruição é linear.
Por que a sua vida deveria ser uma sequência de eventos bem-sucedidos, um avião com destino à felicidade, sempre almejada, nunca, nesses termos, alcançada?
Quem ganha com tantas metas por definição impossíveis de cumprir?
Claro que, além de garantir a sobrevivência, todas temos desejos e planos que dão sentido à vida. Alguns se materializarão, outros serão sonhos que tornam a caminhada encantada. Não precisamos de métricas também para o alumbramento.
Foto: Jacques Henri Lartigue
Há tanta curva. São tantas voltas. O caminho nunca é o mesmo, nem igual para ninguém. Não há coach, ou qualquer que seja o nome da moda para charlatanice, que dê conta da complexidade da vida em suas receitas de sucesso (que em geral se traduzem de forma mais ou menos explícita em riqueza).
Haverá pedras, paredes, encruzilhadas, ruas sem saída, impossibilidades que marcarão fortemente a trajetória de cada qual. Não podemos ignorar que a estrutura que vende a ilusão do sucesso e da felicidade eterna, sustenta-se também na fantasia capitalista neoliberal da meritocracia e em toda retórica violenta/criminosa que deriva disso.
Para tentar lavar de nossos desejos, sonhos e quereres a lógica linear do sucesso, deixo vocês com trechos de um texto de Ursula K. Le Guin, de 1983, elaborado para a cerimônia de colação de grau da Faculdade Mills em Oakland, na Califórnia.
Vale destacar que tal faculdade foi fundada em 1852, como Seminário de Jovens Moças, e em 1871 foi transferida para Oakland, tornando-se a primeira faculdade para mulheres da costa oeste dos Estados Unidos. A partir de 2014, adotou uma política de admissão que recebe mulheres e estudantes de gênero não binários.
Pois, o texto se chama Discurso de formatura de uma canhota e foi traduzido pela chão da feira. É da década de 1980, mas, a despeito de ser um texto de seu tempo, permanece atual e interessante. Não é preciso assinar embaixo de todas as linhas para reconhecer a importância das reflexões.
(...)
“Talvez tenhamos tido suficientes palavras de poder e falado o bastante sobre a batalha da vida. Talvez precisemos de algumas palavras de fraqueza. Em vez de dizer agora que espero que todas saiam desta torre de marfim da faculdade para o “Mundo Real” e forjem uma carreira triunfante ou pelo menos ajudem seu marido a manter nosso país forte e ser um sucesso em tudo — em vez de falar sobre poder, e se eu falasse como uma mulher bem aqui em público? Não vai soar bem. Vai soar terrível.
E se eu dissesse que o que espero para vocês primeiro é se — apenas se — vocês quiserem ter filhos, que vocês os tenham. Não um bando deles. Dois, e chega. Eu espero que eles sejam lindos. Espero que vocês e eles tenham o suficiente para comer, e um lugar aquecido e limpo para estar, e amigos e um trabalho que vocês gostem. Bem, é para isso que vocês foram para a faculdade? Isso é tudo? E quanto ao sucesso?
O sucesso é o fracasso de outra pessoa. O sucesso é o sonho americano que podemos continuar sonhando porque a maioria das pessoas, na maioria dos lugares, incluindo trinta milhões de nós mesmas, vive bem desperta na terrível realidade da pobreza. Não, eu não desejo sucesso a vocês. Eu nem quero falar sobre isso. Quero falar sobre o fracasso.
Porque vocês são seres humanos, vocês encontrarão o fracasso. Vocês encontrarão decepção, injustiça, traição e perda irreparável. Vocês se descobrirão fracas, em situações em que pensavam ser fortes. Vão trabalhar por posses e em seguida descobrir que elas possuem vocês. Vão se encontrar — como eu sei que já aconteceu — em lugares escuros, sozinhas e com medo.
O que eu espero para vocês, para todas as minhas irmãs e filhas, irmãos e filhos, é que sejam capazes de viver lá, no lugar escuro. Que sejam capazes de viver no lugar negado por nossa cultura racionalizante do sucesso, chamando-o de lugar de exílio, inabitável, estrangeiro. Bem, nós já somos estrangeiras. As mulheres como mulheres são em grande parte excluídas das normas masculinas autodeclaradas desta sociedade, onde os seres humanos são chamados de Homem, o único deus respeitável é masculino, a única direção é para cima. Então esse é o país deles; vamos explorar o nosso próprio. Não estou falando de sexo; esse é outro universo, onde todo homem e mulher está só.
Estou falando sobre a sociedade, do tão chamado mundo dos homens da competição, da agressão, da violência, da autoridade e do poder institucionalizados. Se queremos viver como mulheres, algum separatismo nos é imposto: a Faculdade Mills é uma personificação sábia desse separatismo. O mundo dos jogos de guerra não foi feito por nós ou para nós; não conseguimos nem respirar o ar de lá sem máscaras. E, se você colocar a máscara, vai ter dificuldade em tirá-la.
Então, que tal seguir fazendo as coisas do nosso jeito, da mesma forma que vocês fizeram até certo ponto aqui na Mills? Não para homens e para a hierarquia do poder masculino — esse é o jogo deles. Não contra os homens — isso ainda é o jogo de acordo com as regras deles. Mas com qualquer homem que esteja conosco: esse é o nosso jogo. Por que deveria uma mulher livre, com formação universitária, lutar contra um Machoman ou servi-lo? Por que ela deveria viver sua vida nos termos dele?
Machoman tem medo dos nossos termos, que não são todos racionais, positivos, competitivos etc. Ele nos ensinou a desprezá-los e negá-los. Em nossa sociedade, as mulheres viveram e foram desprezadas por viverem todo o lado da vida que inclui e assume a responsabilidade pelo desamparo, fraqueza e doença, pelo irracional e irreparável, por tudo o que é obscuro, passivo, descontrolado, animal, impuro — o vale da sombra, o fundo, as profundezas da vida.
Tudo o que o Guerreiro nega e recusa é deixado para nós e para os homens que compartilham isso conosco e portanto, como nós, não podem brincar de médico, só de enfermeiros, não podem ser guerreiros, apenas civis, não podem ser caciques, apenas indígenas. Bem, esse é o nosso país. O lado noturno do nosso país. Se há um lado diurno, serras altas, pradarias de grama brilhante, só sabemos contos pioneiros sobre isso, nós ainda não chegamos lá. Nunca chegaremos lá imitando um Machoman.
Só vamos chegar lá seguindo nosso próprio caminho, vivendo lá, atravessando a noite em nosso próprio país. Então, o que espero para vocês é que vivam lá não como prisioneiras, envergonhadas por serem mulheres, cativas voluntárias de um sistema social psicopático, mas como nativas. Que vocês estejam em casa lá, cuidem da casa lá, sejam sua própria dona, com um quarto próprio. Que vocês façam seus trabalhos lá, seja lá o que vocês façam bem: arte ou ciência ou tecnologia, ou dirigir uma empresa ou varrer embaixo da cama, e, quando eles disserem que é um trabalho de segunda classe porque uma mulher está fazendo, espero que vocês lhes digam para irem para o inferno enquanto te pagam o mesmo salário pelo mesmo tempo de serviço.
Espero que vocês vivam sem a necessidade de dominar e sem a necessidade de serem dominadas. Espero que vocês nunca sejam vítimas, mas espero que não tenham poder sobre outras pessoas. E, quando vocês falharem, e estiverem derrotadas, e com dor, e no escuro, então espero que se lembrem que a escuridão é o seu país, onde vocês moram, onde nenhuma guerra é travada e nenhuma guerra é vencida, mas onde o futuro está.
Nossas raízes estão no escuro, a terra é o nosso país. Por que olhamos para cima para bênçãos — em vez de olharmos ao redor e para baixo? Nossa esperança está lá. Não no céu cheio de armamento e olhos espiões orbitando, mas na terra que olhamos abaixo. Não de cima, mas de baixo. Não na luz que cega, mas na escuridão que nutre, onde os seres humanos crescem como almas humanas”.
Vamos viver, sonhar e realizar longe das métricas do sucesso.
Esta é a mensagem de ano novo que queria deixar para vocês.
Feliz 2024!
Feliz 2024! Texto potente para começar o ano inquieto e cheio de sonhos.
Amei! 👏🏻